被诅咒的作者

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通过 卡约·恩里克·洛佩斯·拉米罗 & FELIPE ALVES*

A rejeição de Carl Schmitt expõe a tensão entre a necessidade de segurança e a preservação da liberdade intelectual, mostrando também que o cancelamento de autores incômodos é uma tentativa de evitar questões que desafiam nossas certezas mais profundas

1.

Vivemos um momento curioso: em nome da crítica, evita-se o confronto; em nome de suposta justiça, apaga-se o dissenso; em nome de padrões inatingíveis, recusamos a pensar certas ideias. Um tempo de cancelamento constante, sutil em algumas ocasiões, implícito, quase automático, nos gestos e nos silêncios do ambiente intelectual.

O episódio que gostaríamos de dar um pitaco aqui é exemplar neste sentido: em ocasião não muito distante, num evento acadêmico dedicado à valorização da filosofia moderna, muito bem organizado para promover autores e ideias que resistem à tendência contemporânea de apagamento e censura, acabou com um ou outro na plateia – e não na organização, bom que se diga – torcendo o nariz, ainda que veladamente, diante da presença de um dos mais instigantes e controversos pensadores do século XX: Carl Schmitt, o autor maldito que ali estava como um “inimigo maior” entre os autores selecionados.

Fato corriqueiro, talvez até de maneira não pensada, mas revela muita coisa. Em meio a exposições sobre René Descartes, Thomas Hobbes,[I]的 John Locke, Francis Bacon etc. – nomes do “cânone” que, não raro, são vítimas da polícia do cancelamento –, lá pelo meio surgiu também Carl Schmitt.

O ponto era não apenas refletir sobre sua crítica à neutralidade liberal, seu conceito do político, sua análise da soberania ou do estado de exceção, mas, isto sim, um outro aspecto por vezes negligenciado nos estudos schmittianos: a leitura de Thomas Hobbes feita por Carl Schmitt. Ora, num evento sobre filosofia moderna, quem poderia esperar uma má recepção de uma discussão que tenta mostrar as afinidades ou até mesmo o mal uso de Carl Schmitt – ou uso “à sua maneira”, se quisermos – do pensamento hobbesiano?

Resumo da ópera: o público se inquietou e, pelo jeito, certo desconforto foi causado, pois logo após a mesa de debates, a transmissão foi “cancelada” – com o perdão do trocadilho –, privando que outros pudessem assistir posteriormente as conferências dos pesquisadores – boas demais, vale dizer, com leituras polêmicas, certamente (muito mais, aliás, no caso sobre John Locke e a escravidão do que a leitura do “maldito” jurista).

Em tempo, passados os dias, a transmissão voltou a ser pública, mas a razão, ainda que não dita, era evidente na ocasião: o nome de Schmitt, por si só, carrega o estigma de sua adesão ao nacional-socialismo, provocando ataques aos simples mensageiros (e não à mensagem do autor). E para alguns, isso basta para torná-lo ilegítimo, ilegível, indizível e tantos outros termos possíveis; no caso com apenas uma concessão para dizer o seu nome, que antes se diga nazista, ou, ainda, justificarmos muito as razões de se ler esta “joça”.

Bem, alguém poderia dizer que em se tratando deste autor é preciso mesmo ficar com um pé atrás. Mas não entendam mal, o ponto é que tal desprezo é tomado como se as ideias parassem de circular pelo simples fato de matar os autores dentro das Universidades. Nada mais longe da verdade.

Este gesto – um silêncio disfarçado de vigilância moral – nos obriga a fazer perguntas incômodas. É possível pensar certos problemas ignorando um autor que escreveu, dentre tantas outras coisas que ainda nos assombram, justamente sobre os limites da norma, da legalidade, da política feita às escondidas e do consenso?

Podemos seguir defendendo uma postura crítica se evitamos aquilo que nos desestabiliza? Como justificar que devemos aceitar apenas os autores domesticados e higienizados, sem zonas sombrias? Aliás, com o sarrafo tão alto, alguém se salva? É possível compreender certos problemas da filosofia contemporânea ignorando os problemas levantados por certos autores a depender do predicado que recai sobre ele? Como fica a história da filosofia nisso? Ou mais: como ensinar história da filosofia se podemos com tamanha tranquilidade desviar dos problemas e autores?

Claro que não resolve usar um argumento de autoridade do tipo: “Se nem mesmo Walter Benjamin,[II] Herbert Marcuse, Jacob Taubes, ou mesmo Franz Neumann e tantos outros (pra não falar dos italianos), se negaram a ler esse católico desgraçado, quem sou eu na fila do pão para fazê-lo?”.

Mas o ponto é que o pensamento deste autor maldito já circulava no Brasil na década de 1920, influenciando figuras que iam de Francisco Campos e Oliveira Vianna até Sérgio Buarque de Holanda na década de 1930. E isso não é pouca coisa. Aliás, a situação ainda piora: seu 开国元勋, por exemplo, o espanhol Juan Donoso Cortés, já circulava nos jornais nacionais e de nossa região no século XIX. O que estes autores malditos compreenderam muito bem é que as ideias importam, por isso quanto mais elas circulassem fora do seu ambiente de origem – a saber, congressos de especialistas e afins –, melhor. Bem, essas ideias estão aí, gostemos ou não.

2.

Carl Schmitt foi, sim, entre 1933 e 1936, um pensador comprometido com um regime nunca suficientemente condenado, de gestão da desgraça e destruição da vida. Isso é fato, e não pode ser ignorado nem menosprezado. O que vem depois de uma afirmação deste tipo já é um problema, contudo o “mas” aqui não é trivial, quer dizer, não temos o luxo de ignorá-lo, pois gostemos ou não, sua obra teórica permanece como uma das mais agudas análises sobre o poder, o direito e a política no século XX.

Suas afirmações polêmicas e bem pensadas – pois disse certa feita que a primeira frase de um livro “dita o rumo” da publicação –, que vão desde “soberano é quem decide sobre o estado de exceção”; que “há um sentimento anti-romano”; “o conceito de Estado pressupõe o conceito do político” ou mesmo aquelas ainda mais polêmicas, como quando disse que a ditadura foi uma “sábia invenção da República romana”, e tantas outras que, no mais das vezes, não invalidam as críticas muito bem formuladas durante a República de Weimar contra o liberalismo político, a indecisão parlamentar e o 前厅 da aristocracia do dinheiro (como ele diria em 1922).

O ponto é que não dá pra dizer que suas formulações não continuam sendo uma provocação fundamental a qualquer concepção normativa da política, ou que não continua atual sua crítica ao parlamento, acusado de diluir a autoridade em comissões técnicas e de esconder o conflito sobre o véu da deliberação em um “nem afirmo nem nego” (a ponto de, vai dizer ele, se os parlamentares tivessem diante da escolha entre Jesus ou Barrabás, suspenderiam a decisão e criariam uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar).

Mesmo a compreensão do político pelo conflito, a distinção entre amigos e inimigos, longe de um elogio puro e simples da guerra, é uma tentativa de pensar a política como aquilo que irrompe quando o consenso falha, uma realidade conflitual como o mais elementar num mundo plural e não-homogêneo. Rejeitar Carl Schmitt, neste contexto, é mais do que um julgamento, é uma recusa ao enfrentamento. É evitar a pergunta trágica que o seu pensamento impõe: o que sustenta a ordem quando a norma falha?

Cancelar Carl Schmitt é, no limite, um sintoma da nossa dificuldade em lidar com a ambiguidade, com o perigo, com a densidade e complexidade da realidade e, mais, em lidar com o fato de que mesmo os deuses do Olimpo são falhos. Neste ponto, parece interessante lembrar que, mesmo no circuito de ideal de fala, Carl Schmitt não foi cancelado.

Jürgen Habermas afirmou em conferência pública laudatória ao trabalho de Daniel Goldhagen sobre Os Carrascos Voluntários de Hitler que “a história é parte de nós”, portanto, Jürgen Habermas enfrentou o teólogo político Carl Schmitt e, justamente, a forma como este último fez a leitura de Thomas Hobbes, para liquidar os danos.

3.

Por fim, permitam só um comentário breve sobre o tom irônico da coisa: num evento pensado para combater um cancelamento, reproduz-se, contra Schmitt, a mesma lógica do cancelamento que é feito contra os autores modernos e os inúmeros predicados que lhes são atribuídos até o limite da recusa da leitura.

Mas talvez a lição mais profunda esteja aí. Os autores mais incômodos não são apenas aqueles que disseram o que não deviam, mas aqueles que ainda nos obrigam a pensar aquilo que preferíamos esquecer. Bom, por aqui, para ir para os finalmentes, injustamente Carl Schmitt se coloca nas suas “memórias do cárcere” – quando de sua prisão no campo de concentração dedicado aos nazis pelos norte-americanos –, como um Epimeteu cristão, posicionando-se ao lado dos “cancelados” Nicolau Maquiavel, Jean Bodin, Thomas Hobbes e do capitão Benito Cereno, personagem do livro de Herman Melville. Então, parece que faltou um adjetivo, grande oportunista!

Ler Carl Schmitt, hoje, não é pura e simplesmente endossá-lo, é reconhecer que seu pensamento ainda pulsa nos subterrâneos da política contemporânea. Ele está ali nos espaços de exceção decretados em nome da “segurança”, nas decisões executivas que suspendem corriqueira e constantemente a norma para justificar a violência contra o próprio povo, na permanente tensão entre ordem e crise e tantas coisas mais.

Por mais estranho que possa soar, Carl Schmitt ajuda a compreender como uma democracia pode constantemente fazer uso de mecanismos ditatoriais para se manter, e ainda assim se afirmar como “democrática” (mesmo não sendo na prática). Ora, não é um pouco o nosso caso? Alguém pode dizer que “as instituições estão funcionando”, que o Estado Democrático de Direito está vigente, ou aberrações do tipo “o poder judiciário irá nos salvar”, ao mesmo tempo em que convive tranquilamente com a desgraça diária já tornada regra, violações de direitos e destruição da vida ou coisa mais que o valha.

Rejeitá-lo não nos torna moralmente superiores, apenas mais cegos. Precisamos encarar nossos fantasmas, e não apenas varrê-los para debaixo do tapete. Se queremos mesmo preservar o espírito crítico dos modernos, devemos estar dispostos a escutar até mesmo aqueles que nos causam desconforto. Mas, afinal, quem decide o que pode ser lido?

Bem, esse deve ser o novo soberano, uma vez que o soberano decide sobre a suspensão (exceção), mas, também, quando ela acaba mantendo ou, ainda, constituindo uma nova ordem.

*卡约·恩里克·洛佩斯·拉米罗 é doutor em direito pelaUnB e professor visitante na UNILA.

*Felipe Alves 是 USP 的哲学博士候选人.

笔记


[I]的 Bom lembrar que este também muitas vezes é tido como maldito.

[II] É bom considerar que não parece haver uma longa troca epistolar entre Benjamin e Schmitt, pois o último nunca respondeu ao primeiro. Isto não quer dizer que não houve um enfretamento teórico, isto sim, Benjamin sempre viu em Schmitt um adversário e o enfrentou pelos textos, o que também foi feito por Jacob Taubes, com a diferença que Taubes tem um diálogo epistolar com o jusfilósofo de Plettenberg.


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